Crítica: ‘Crise’(1946), de Ingmar Bergman

Utilizando do tom teatral para reger a atmosfera do filme, Ingmar Bergman flerta aqui com temas que viriam a dar substância a sua filmografia em anos posteriores. ‘Crise’ é um filme que tratará das diferenças que tangem a vida de cidades pequenas e grandes, falará do senso do ser humano como algo unicamente inserido no presente e adentrará também no caráter “deveniente” que rege nossa relação com o mundo.

O filme, baseado na peça de Leck Fischer, contará a vida de Nelly, uma jovem que acaba de completar 18 anos e tem sua vida calma e tranquila alterada com o surgimento de sua mãe, a quem jamais havia visto. A trama caminhará, durante os seus 93 minutos de duração, sobre essa nova relação de Nelly com sua mãe e a consequência disso na vida de sua mãe adotiva.

O início do filme é regido por algo que Bergman utilizou muito em seu começo de carreira, a figura de um narrador para preencher eventuais lacunas no roteiro e ambientar o espectador na trama contada. Aqui esse narrador é mais discreto, fará sua aparição nos minutos iniciais e em alguns raros momentos durante o prosseguimento do filme. No entanto, diferente de filmes do próprio Bergman que o narrador traz incômodo ao espectador, aqui sua presença é atenuada e leve, cumprindo sua missão.

Essa primeira parte do filme servirá para nos alocarmos na vida calma e pacata da pequena cidade onde o filme se passa. Veremos todo o senso puritano que rege os residentes do local. Porém, mais do que isso, veremos como há um senso de camaradagem entre aqueles indivíduos. Todos ali parecem querer ajudar seus companheiros. A ingenuidade é algo inerente ao local.

O contraponto com tudo isso surge com a vinda da figura da mãe biológica de Nelly, oriunda de uma cidade grande, uma mulher que trabalha unicamente por satisfazer seus desejos, jamais levando em conta o interesse do outro. Essa personalidade da mulher serve também para nos dar um esboço de como é levada a vida em uma grande cidade e como esse intercâmbio social é guiado por um senso quase patológico de satisfação de necessidades pessoais.

Essa figura da mãe biológica emana em Nelly um sentimento de desconforto com sua vida atual. Veremos surgir em Nelly um conceito de querer se elevar perante o mundo, encontrar novas pessoas, novos trabalhos e, consequentemente, novos romances. Essa sensação de inquietação faz com que Nelly decida ir com sua mãe para a cidade grande, abandonando sua vida de outrora e sua mãe adotiva. Há nesse ponto uma clara referência do roteiro, e na construção da personagem de Nelly, ao romance de Gustave Flaubert, ‘Madame Bovary’. Nelly é um pequeno protótipo de Emma Bovary no romance de Flaubert. Ambas possuem a mesma inconformidade diante da vida e querem cada vez mais. Porém, a diferença aqui se concentra nas resoluções para seus respectivos destinos.

Bergman entrega, com alguns personagens centrais da trama, a noção de vida como o aqui e agora. Passado e futuro não existem para os personagens, tudo que importa são os estímulos inseridos no mundo na efêmera passagem do momento. Junto com essa noção, imperam os discursos existencialistas nos personagens. Sentido e predestinação são ignorados, dando importância unicamente para a imprevisibilidade que impregna a vida humana e a inabilidade, em determinados personagens, de conseguirem conviver com a inabalável certeza de que seus atos e consequências se devem unicamente a suas próprias escolhas.

O indivíduo aqui, mais precisamente Nelly, é estudado como algo em eterno processo de mudança. Nelly não necessariamente evolui, mas segue um senso cambial de mudanças. Em um momento a vida em uma cidade pequena não basta para a jovem, ela quer mais. Em outros momentos, aquela vida parece o mais próximo da felicidade que a jovem pode encontrar.

A reta final do filme perde ligeiramente o brilho de sua primeira metade, se fazendo um tanto quanto repetitiva e arrastada. O filme, facilmente, poderia ter terminado sem a utilização de algumas cenas. Mas isso passa longe de comprometer o inegável valor desta obra e todo o empenho dos realizadores, em especial Bergman, em dar ao espectador um filme que traga algo substancial em sua história.

A direção do sueco é cautelosa. Bergman despreza qualquer tipo de recurso pretensioso ou que fuja de seu controle. Apesar dessa limitação, teremos algumas aproximações e movimentos de “zoom in/out” utilizados por sua câmera. O tom teatral é algo natural aqui e também atua sobre as atuações dos atores.

O elenco está regular no filme. Inexoravelmente, teremos atuações regidas pelo princípio da tragédia em cada situação, com uma exasperação de cenas emocionais que delimitam os campos trilhados pelos atores. Todos seguem um padrão de atuação, sempre guiadas por expressões carregadas e discursos exasperados. No entanto, há um nome que nos entrega uma interpretação diferente e se sobressai no filme. Stig Olin entrega uma interpretação ausente de exageros. Sua presença aqui se resulta unicamente em discursos serenos, mesmo quando o roteiro propõe falas intensas, sem jamais alterar seu tom de voz. Suas feições são tranquilas e trespassa a natureza conturbada do psicológico do personagem que veremos aflorar nas últimas cenas.

Necessário aos fãs do sueco, ‘Crise’ é um dos melhores filmes de Ingmar Bergman nesta fase mais precoce do diretor. Uma obra doce, nutrindo seu inseparável tom teatral, que consegue fazer com que o espectador se sinta parte da vida daqueles personagens. Simples, o filme ainda não esquece de investigar conceitos filosóficos presentes em nós e, consequentemente, nos personagens do filme.

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